Meu filho está pronto para ler?
Por Ferdinando Casagrande*
No banco ensolarado do jardim ela tomava sol. A bengala ao lado, rosário na mão, ela recompensava a companhia que eu lhe fazia recheando minha imaginação com histórias sobre a infância feliz nos campos da Serra da Estrela, sobre as cerejas que comia do pé e a neve branca como açúcar que ela pegava com a mão no parapeito da janela. “A neve era doce?”, eu perguntava. Ela ria da minha dúvida. “Quando vou poder ler histórias tão bonitas quanto as suas?” Minha avó então me afagava os cachos e dizia, com o sotaque português que uma vida inteira no Brasil jamais apagou: “Não te apresses, meu neto. A hora chegará. Por enquanto, te ocupas de brincar que é o melhor que podes fazer.”
Eu devia ter uns cinco anos e minha avó, em sua sabedoria de camponesa que só foi alfabetizada aos 9 anos, sabia que naquela idade eu não estava pronto para as exigências da escolarização. Algo que hoje em dia, infelizmente, formuladores de políticas educacionais parecem prontos a ignorar. Em muitos países, incluindo o nosso, currículos e propostas pedagógicas vêm sendo formatadas para acelerar a chegada da criança à prontidão para a alfabetização.
A professora Erika Chistakis, pesquisadora da Universidade de Yale e especializada em Educação Infantil, relata em seu mais recente livro (“A Importância de Ser Pequeno: o que Crianças de Pré-Escola Realmente Precisam dos Adultos”, fevereiro de 2016) que as transformações nessa direção começaram há duas décadas nos Estados Unidos. “As crianças são encorajadas, já a partir dos 4 anos de idade, a trabalhar por longos períodos sentadas na cadeira e têm metas de aprendizado a atingir”, afirma Erika. “Tudo com o objetivo de prepará-las, o quanto antes, para o ritmo da rotina escolar e o início da alfabetização.”
Na pedagogia Waldorf, felizmente, seguimos um caminho diferente. A avaliação sobre a prontidão escolar de um aluno se baseia na observação de uma série de fatores que indicam quando a criança está realmente pronta para iniciar com conteúdos intelectuais. Ao invés de pressionar a chegada a esse ponto, o papel do educador é criar as condições ideais para que a criança conquiste naturalmente essa prontidão, por meio do brincar, do exercitar-se, da fantasia. “Quando se fala em prontidão para a alfabetização, logo se pensa em leitura e escrita”, explica Pilar Tetilla Manzano Borba, terapeuta ocupacional pós-graduada em Antroposofia na Saúde e tutora do Jardim de Infância na Acalanto. “Prontidão escolar, porém, é muito mais do que isso.”
Pilar explica que a prontidão só ocorre quando a criança consegue perceber sensorialmente formas, orientar-se no espaço, perceber direções, lateralidade e ter equilíbrio. “Ela também precisa saber ouvir, concentrar-se, orientar-se no ritmo, manter a atenção”, ensina. “E, sobretudo, ela precisa conhecer o sentido do que está percebendo, conhecer as palavras, suas relações e seu simbolismo.”
Uma criança que ainda não controla o corpo, ou inibe movimentos amplos para usar motricidade fina, por exemplo, precisa de mais tempo no Jardim de Infância para se desenvolver. Pillar explica que a aquisição das habilidades motoras finas exigidas pelo trabalho de escrita só ocorre depois de a criança ter usado o seu corpo todo nas brincadeiras livres (como rolar no chão, se arrastar, engatinhar, cambalhotar, pular, andar, correr, subir e descer escadas) e de parquinho (como balanço, escorregador, trepa-trepa, gira-gira, gangorra, terra, areia e água).
“As brincadeiras colaboram para a aquisição da coordenação motora, para o equilíbrio e a percepção corporal de si e sua relação com o espaço circundante”, explica Pilar. “Ao vivenciar ativamente as três dimensões no espaço, a criança se prepara para a aquisição da escrita e da leitura.”
Apesar de vivermos num mundo repleto de letras – nos anúncios, nos outdoors, nas embalagens, nas roupas, nos tapetes –, a criança só conseguirá ler e escrever quando estiver neurologicamente madura para isso. “Tanto os educadores infantis quanto os professores do Ensino Fundamental precisam entender como se processa o desenvolvimento neurológico infantil”, defende Pilar. “Somente dessa forma eles podem programar suas aulas em favor da criança e não atrapalhando seu desenvolvimento neuropsicomotor.”
Em seu artigo “A integração das Barreira Medianas e as Brincadeiras de Roda”, Pilar cita a integração da Linha Média Vertical, que se dá por volta dos 5-6 anos. Essa barreira ajuda a criança a viver os dois lados do corpo, antes que a dominância de um deles se estabeleça. Por isso, muito comumente, os pequenos são ambidestros nos primeiros anos de vida. “Exigir uma atividade de coordenação motora fina, como bordar ou escrever, antes que a criança tenha integrada essa linha pode levá-la a lateralizar-se muito cedo”, explica Pilar. “Isso pode gerar problemas de aprendizagem futuros, pois não houve a integração de cada lado do corpo separadamente.”
Além dos aspectos neurológicos, Pilar destaca ainda a necessidade de amadurecimento emocional por parte da criança. “No primeiro setênio, ela ainda está aprendendo a viver no social, a ouvir o outro, a esperar sua vez, a lidar com as emoções”, explica a pedagoga. “Ela só estará pronta para seguir depois que conquistar essas habilidades, e também autonomia no que se refere ao uso do banheiro, à alimentação, ao vestuário e a cuidar de seus pertences.”
E o que acontece, então, quando se tenta acelerar esse processo? “A hiperatividade, hoje tão frequente nas salas de aula, é fruto de uma infância onde as crianças são paradas muito cedo em cadeirinhas e mesinhas”, afirma Pilar. “Isso as impede de coordenarem seus corpos, explorarem seu espaço e vivenciarem as coisas ao seu redor.” Por outro lado, crianças que tiveram a oportunidade de brincar na infância se mostram, segundo Pilar, bem mais calmas na movimentação corpórea em sala de aula, mais atenciosas e concentradas na aula na fase escolar.
Nos Estados Unidos, a pesquisadora Erika Christakis foi buscar respostas quantitativas numa avaliação feita pelo Sistema Público de Educação do estado do Tennessee. Os pesquisadores investigaram o desempenho de estudantes do 2º ano. “Os resultados mostraram que as habilidades em alfabetização, matemática e linguagem das crianças submetidas à essa ‘preparação’ eram piores”, relata Erika em seu livro. “Provavelmente, a causa desse desempenho é a antecipação, para aqueles alunos, do estresse escolar.” Provocado, naquele caso, pelo ambiente carregado de estímulos (cartazes, letras, números pelas paredes) que elas não conseguiam compreender, pelos longos períodos sentadas em carteiras, pela exigência de atenção que elas não estavam prontas para oferecer. “O ensino intelectual precoce hoje está causando nas crianças toda sorte de doenças”, complementa Pilar. “Exatamente porque elas não estão sendo respeitadas em suas necessidades intrínsecas como o brincar.”
O que me leva de volta aos bons conselhos da minha avozinha. Quando eu insistia que queria aprender logo, ela me acalmava dizendo que eu teria todo o tempo do mundo para ler. “Por enquanto, aproveita para brincar, que para isso não terás a vida inteira.”
Muito obrigada! Clareza e argumentação científica!
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